segunda-feira, 23 de maio de 2016

Éramos Eu, Zé e Guga

Na foto, da esquerda para a direita: Zé, Eu e Guga
No dia 2 de maio, com a partida de Zé Otávio, meu primo e amigo, meu irmão, em sua última viagem, desse trio ficou só eu.
Moleques nas campinas do Engenho Milão, andando a cavalo ou burro mesmo, nas descobertas de lugares "secretos" do engenho, como a Toca da Goiaba, ou nos banhos de bica e, furtivamente, nos banhos de rio, proibido por causa da "sistozomose" como era conhecida naquelas paragens do município de Palmares, aproveitávamos o que a vida poderia nos oferecer de bom, nas férias escolares. Era quando acordar cedo era só prazer, pra tomar o leite ordenhado na hora, e depois, num generoso café da manhã, comer angu, mingau de aveia ou papa, banana assada, no início no fogão a lenha, depois veio o a gaz, além das bolachas pilar e da manteiga turvo, regados ao café com leite, aquele leite que, de tão gorduroso, num instante formava a nata. Refastelados, era pegar a campina e explorar o que a vida no engenho tinha pra nos brinda. Os cavalos eram poucos, então sempre rolava uma garupa. As vezes a bunda ficava assada, pela acidez do suor do cavalo. Mas, a brincadeira nos fazia enfrentar todos os sacrifícios.
Soltos na campina só regressávamos pra casa na hora do almoço. Lanche, resolvíamos isso na horta, que ficava atrás da Casa Grande, ou em outro pé de frutas que encontrássemos no caminho. Sede, nós tínhamos a bica que, além de um gostoso banho pelados, podia beber a água que era potável.
Durante o dia rolava as conversas no quarto de cangalha, as visitas à serraria do engenho, com suas máquinas comendo madeiras para fazer móveis e outros apetrechos ou as peladas no campo de futebol, meio ladeiroso, no verão tinha a malícia, um vegetal muito pequeno, que murchava ao contato com a mão, mas tinhas uns espinhos que incomodavam e no inverno, muita lama. Para depois um banho frio, ás vez o termômetro marcando os 15 graus.
E assim, esse trio foi vendo os anos da vida serem sorvidos em goles generosos. De volta ao Recife tinham as peladas nos quintais das casas onde morávamos, os jogos de botão, de ping pong ou outros jogos de mesa. Tirar manga no pé que ficava no quintal, ou chupar cana ou ainda beber água de coco fazia parte do nosso cotidiano, Também tinham as conversas, as histórias que nossa imaginação era capaz de produzir, com nosso celebre personagem João Doido.
Era nossa amizade que, alicerçada nesse clima de convivência e cumplicidade, mesmo com cada um de nós tendo personalidade distinta, fazia com que se rolasse umas tretas, no final nos entendíamos. As férias era nosso ponto de maior convivência, fosse em Milão ou nas casas de veraneio que meu tio alugava.
Juntos vimos chegar nossa adolescência, descobrimos o sabor do cigarro - esse, que depois se mostraria motivo de tanta tristeza - os prazeres do sexo - debutando na Coreia de Palmares, como era conhecido na cidade o lugar onde meninos que não sabem nada encontra mulheres que sabem tudo. Os estudos, os vestibulares, as noitadas, o contado com a cachaça, com os jogos de baralho, as apostas, a ida aos estádios de futebol, aprender a dirigir. E, por mais amigos que fossemos fazendo ao longo dessa caminhada, esses amigos acabavam, de alguma forma, se tornando comuns.
Nenhum de nós havia conseguido concluir curso superior. Eu e Zé concluímos o curso técnico pela Escola Técnica. Guga concluiu o segundo grau. Eu e Guga passamos em concursos da Embratel e da Caixa. Zé terminou o CPOR e foi morar no Engenho.  Só com a idade mais avançada, formou-se em advocacia. 
Vieram os casamentos - Ze casou primeiro depois casou Guga. Eu fui o último. Vieram os filhos e filhas. Mas sempre estivemos próximos, sempre nos visitávamos, principalmente pra tomar uns tragos e bater um papo. O trabalho e a família alteraria nossa rotina de maior convivência. Ze no Engenho, Guga foi trabalhar em Salgueiro, depois Araripina e por fim Belo Jardim.
Mas o comum era sempre estarmos em contato, mesmo numa época que telefone só o fixo. Sempre nos procurávamos para uma prosa. E se, por várias circunstâncias estivéssemos em condições financeiras diferenciadas, continuávamos sendo os mesmos dos tempos de moleques. Milão continuava sendo nossa cidadela.
Milão foi então vendido. Com ele ia parte da nossa memória afetiva. Veio então a primeira preocupação: Guga é diagnosticado com câncer. Passados 6 meses do diagnóstico, falece. Um choque para toda a família, especialmente para seus pais e meus tios. Para nós um primeiro grande impacto. Já não estávamos mais os três. Havia uma lacuna naquele grupo. Uma lacuna não preenchida. Vimos as filhas e filho de Guga crescerem e vi Zé se mandar lá pro sul atrás de encontrar um caminho para sua independência financeira. Mesmo trabalhando na Embratel ainda tive a oportunidade de trabalharmos juntos nuns projetos envolvendo bingo e tal antes dele entrar numa fase do seu negócio mais profissionalizada. As dificuldades de trabalhar com jogos, não o fez desistir de tentar descobrir como entregar produtos ligados a sorteios. Era um obstinado. E conseguiu. Caiu, se levantou, caiu de novo, se levantou de novo e ai não caiu mais. Construiu bom patrimônio para si e sua família.
Do trabalho na Embratel ingressei na militância política, inicialmente o movimento sindical e depois a militância partidária, enquanto Zé trabalhava para ter posses que lhe garantisse uma vida confortável.
Seguíamos então nossas vidas. Filhos casando, netos e netas e a vida seguindo seu curso.
Trilhando caminhos distintos, havia entre nós, mesmo que não explicito, uma admiração mútua. Até que num determinado momento Ze resolve se candidatar a Prefeito de Palmares em 2012. Muito determinado, não deu ouvidos às críticas que recebeu. Nessa mesma eleição, sai candidato à vereador em Recife.
Não nos elegemos, mas Zé Otávio semearia vários amigos e amigas em Palmares, pela dignidade que deu à Política e, sobretudo, às pessoas. 
E, exatamente na comemoração dos meus 60 anos, meu amigo teve uma participação contida, o que não era comum à sua personalidade. Disse-me naquela oportunidade, que estava com um sério problema. Poupou-me de detalhes, talvez para não estragar minha festa.
Dois dias depois acompanhava ele numa viagem a São Paulo, para fazer o diagnóstico e definir o tratamento mais adequado. Câncer de Esôfago. Os riscos desde a cirurgia - podia nem sair dela vivo - até os desdobramentos dos tratamentos pós-operatório eram muito altos. 
Enfrentou todas as etapas como um guerreiro. Mesmo com sua saúde fragilizada, coordenou, ainda em 2014, o apoio da sua equipe em Palmares à eleição de Dilma, Armando e João Paulo, meus candidatos. Se no passado tinha um pensamento mais conservador, havia trilhado um caminha político que o aproximava mais do pensamento progressista, desde a eleição de 2012. E se nossas vidas tinha tido tantos pontos de encontro, meu amigo fazia um movimento para que nos encontrássemos também na política. Se não foi em 2012, começaria em 2014 e, após se sentir recuperado plenamente do tratamento, me convidou em 2015 para desenvolvermos um trabalho no sentido de garantir sua eleição a Prefeito de Palmares em 2016. Chegou a dizer que, se eu não topasse ele não se candidataria. Eu não tive escolha: Como negar a um amigo-irmão, a possibilidade de concretizar um sonho? Sabia dos riscos. Mas, o que seria da vida se não os corrêssemos?
E assim fomos nós. As primeiras pesquisas, um plano, tendo como diretriz a priorização da construção política antecedendo a construção eleitoral. Juntos conseguimos realizar um conjunto de ações que procuravam encantar o cidadão de Palmares, especialmente a militância.
Sua saúde cada vez mais debilitada, mas a esperança em seus olhos de guerreiro, só nos empurrava a colocar o plano em execução. Cada etapa ia sendo cumprida com êxito e, mesmo ausente de Palmares em razão do seu estado de saúde, manteve-se como o centro das atenções das lideranças politicas do município. Até que, no último dia 2, já não pudéssemos mais desfrutar dessa convivência de 61 anos. Seus olhos, já cerrados, não mostravam mais o brilho dos dias em que, mesmo enfrentando todo o sacrifício da doença, ficávamos horas trocando impressões sobre a politica no geral e a política de Palmares, no particular. Costumava comentar como a politica é envolvente e motivadora.
Suas últimas palavras sobre esse assunto foram "se não fosse minha saúde esta eleição estaria no papo" no momento em que se despedia do grupo mais próximo de militantes com os quais dividíamos os rumos do nosso projeto na cidade. Ainda abriu os olhos e esboçou para mim um sorriso quando comentei no quarto sobre a situação de Palmares, na sexta-feira da semana anterior  à sua morte.
Hoje é uma saudade que dói latejada. Mas vai passar. Das tantas conversas que tivemos ao longo dessa nossa convivência, agora só em minha mente seus sons e imagens, disponíveis para rememorar num monólogo muito particular.
Daquele trio que buscou viver a vida com alegria, fiquei eu para registrar um pouco essas memórias num momento que o mundo está tão mudado, e Milão e aquelas casas com seus quintais ficaram ou vão ficando para trás. E então, vamos compartilhando com as novas gerações que se chegaram em nossas vidas um pouco dessa caminhada. Quem sabe possam extrair dessas memórias alguma lição que sirva para construção das suas vidas.
Uma coisa é certa, a tristeza das perdas só se manifesta com tal intensidade, porque com igual intensidade vivemos a vida que se ofereceu para nós em cada momento.

3 comentários:

  1. Quando criança participei dessas lembranças. Sou testemunha ocular. Só não sou nas visitas na Coréia de palmares era criança. Obrigado primo por me fazer lembrar dessas passagens no Engenho que incluo outros dois personagens também meus irmãos, Beto e Carlos. Mais uma vez obrigado.

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  2. Quando criança participei dessas lembranças. Sou testemunha ocular. Só não sou nas visitas na Coréia de palmares era criança. Obrigado primo por me fazer lembrar dessas passagens no Engenho que incluo outros dois personagens também meus irmãos, Beto e Carlos. Mais uma vez obrigado.

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