segunda-feira, 3 de abril de 2017

Entre você e o real, a pós-verdade

Do livro O Pai de Família e outros estudos, de Roberto Schwarz, extrai o seguinte texto:
O cinema e Os fuzis 
Assim como nos leva à savana, para ver um leão, o cinema pode nos levar ao Nordeste, para ver retirantes. Nos dois casos, a proximidade é produto, construção técnica. A indústria, que dispõe do mundo, dispõe também de sua imagem, traz a savana e a seca à tela de nossos bairros. Porque garante a distância real, entretanto, a proximidade construída é uma prova de força: oferece a intimidade sem o risco, vejo o leão, que não me vê.  
A situação real, portanto, não é de confronto vivo entre homens e fera. O espectador é membro protegido da civilização industrial, e o leão, que é de luz, esteve na mira da câmara como podia estar na mira de um fuzil.
A proximidade mistifica, estabelece um contínuo psicológico onde não há contínuo real: o sofrimento e a sede do flagelado nordestino, vistos de perto e de certa maneira, são meus também. A simpatia humana, que sinto, barra a minha compreensão, pois cancela a natureza política do problema. Na identidade perde-se a relação, desaparece o nexo entre o Nordeste e a poltrona em que estou.  
Conduzido pela imagem sinto sede, odeio a injustiça, mas evaporou-se o principal; saio do cinema arrasado, mas não saio responsável, vi sofrimento, mas não sou culpado; não saio como beneficiário, que sou, de uma constelação de forças, de um empreendimento de exploração. 
Nestas linhas, Schwarz nos conduz a refletir sobre o poder da imagem que tanto serve para nos fazer ver o leão sem correr riscos, como ao ver um ser humano numa situação degradante, subproduto de uma sociedade exploradora, sem que me sinta responsável. Um texto que já em 1966, provocava reflexões sobre a relação com o mundo, a partir da mediação (mídia) da imagem.

É sabido que, assim como todas as espécies vivas, o ser humano luta, cotidianamente, para garantir sua sobrevivência e a perpetuação da espécie. São fatores orgânicos, comandados pelo nosso cérebro, que estimulam a vontade de realizar o necessário para atender essas necessidades.

Aristóteles, filósofo grego (IV A.C.), identificou que para atender ao propósito de realizar essas vontades orgânicas, o ser humano tornou-se um animal gregário, levado a viver junto aos da sua espécie. As formas de organização, segundo ele, seguiu esse princípio, sendo a primeira delas o casal, depois a comunidade do pão - a família -, até a maior de todas as comunidades, a Cidade. A polis (do grego cidade), para ele seria a comunidade política cujo propósito seria a felicidade. Crescendo em quantidade de indivíduos, os seres humanos continuariam se organizando em comunidades, na mais importante delas a mediação passou a ser exercida pela política.

Ao longo do processo histórico, as formas de organização social foram se redefinindo, e hoje a forma de organização predominante é a sociedade.

O sociólogo Fernand Tomnie, define dois modelos de organização social:
A comunidade é uma forma de organização que diz respeito a toda vida social de conjunto, íntima, interior e exclusiva, homens que se sentem e sabem como pertencendo-se uns aos outros, fundados na proximidade natural de seus espíritos; A sociedade diz respeito às relações de domínio público, do mundo exterior e das relações societárias. Cada vontade seria reconhecida socialmente como unidade subjetiva, moralmente autônoma, independente e auto-suficiente, estando para si em um estado permanente de tensão com as demais. As intromissões de outras vontades, são, na maioria das vezes, aludida como ato de hostilidade. E concluí: Na comunidade, os homens permanecem unidos apesar de todas as separações e na sociedade permanecem separados, não obstante todas as uniões.

Na sua trajetória de garantir seu sustento diário, o ser humano vai desenvolvendo formas de organização social  mais adequadas a sua estratégia para atender suas necessidades, a partir da realidade objetiva que o cerca. Em síntese, vai fazendo escolhas e construindo formas de organização que melhor se adeque às circunstâncias do mundo vivido.

Se na cidade de Aristóteles a política era o exercício entre seres humanos que se sentiam pertencentes uns aos outros, na sociedade, uma forma de organização social em que predomina o distanciamento, a imagem passa a assumir um lugar de destaque na mediação e a política foi sendo redefinida, segundo esses novos padrões

Em seu livro A Sociedade do Espetáculo, Guy Debord reflete sobre as formas de organizações sociais em que o espetáculo (a imagem) assume esse papel de mediação. Schwarz, no texto acima, discute o mais grave dos efeitos dessa mediação: o não comprometimento com os dramas humanos e a não compreensão do problema político a eles inerentes.

Fazendo um exercício a partir dessas observações, imaginemos um filme, em que ao invés do espectador do texto acima estar assistindo, ele será filmado em sua confortável poltrona. O expectador agora serão os flagelado da seca que, mesmo em condição de miséria que se encontram, já estariam devidamente incorporados à sociedade moderna, sendo capazes de ver como um ato de hostilidade a intromissão de outras vontades, em sua vontade de ter uma vida digna.
O que poderia acontecer se, ao filme, for incorporada a mensagem de que o flagelo de uns é uma consequência do bem bom dos outros?

Esse foi um breve exercício para se tentar refletir sobre o papel da imagem(mensagem) numa organização em sociedade. Quando a imagem, devidamente manipulada por aqueles que concentram riqueza e poder, com o uso do estado da arte das ciências, passa ser assumida pela sociedade como expressão da verdade, que conflitos pode promover, tendo por alvo outros grupos humanos?

Bem vindos á era da Pós-Verdade.


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